Andando pelos
corredores das Comissões no Anexo 2 da Câmara dos deputados, entre ‘protestantes’
(os que protestam e os que se intitulam evangélicos), notei um grave ‘vazio de
ideal’, que para esse que vos escreve, é o grande mal da sociedade.
Os que se sentem
lesados pelo fato de Marcos Feliciano ocupar a presidência da Comissão de
Direitos Humanos, gritavam, urravam palavras de ordem. “QUADRILHA!” era o que
repetiam, quando alguns deputados que apoiam o líder evangélico saíam da sala
da tão polêmica e visada comissão. Até que, num momento de silêncio, uma moça
carregando seus vinte e poucos anos gritou:
- Ei pessoal! Calma
aí! Estamos protestando contra o Feliciano, vamos manter o foco!
No mesmo instante o
silencio se prolongou e os gritos tiveram outro tom, na verdade o mesmo que
ouvimos há semanas: fora Feliciano.
Ali, no calor do
momento, a multidão desviou-se do objetivo. Acontece. Bola pra frente.
Ao caminhar alguns
metros me afastando desse grupo, ganhei o corredor paralelo, que apresenta uma
entrada para a mesma sala, entrada esta que é reservada para o público,
imprensa e assessores parlamentares como eu. O tumulto adquiria uma maior
proporção e percebi que ali ocorria um embate: cidadãos contra o deputado Feliciano
e cidadãos pró-Feliciano. É óbvio que o grupo que estava ao lado do deputado do
PSC era evangélico. Ali, em meio às discussões, embates ferozes, aquela disputa
pra ver quem tem o grito mais alto, um coro ressoou pelos corredores:
“Feliciano, não renuncia, o Brasil precisa da família”.
Entre aplausos e
vaias, andei lentamente até a parte externa do Anexo 3 e acendi um cigarro.
“Afinal, o que está acontecendo ali?”, pensei.
A luta de um grupo é
pela renúncia de Feliciano. A do grupo antagonista pede por sua permanência,
como uma espécie de redenção moral. Mas o que percebi ali foi uma grave
evidência desse “vazio de ideal”, como se estivessem perdidos em meio às
câmeras da imprensa, que registravam tudo com voracidade e satisfação. O grupo
pró-Feliciano entoava hinos tradicionais de suas igrejas. Mas quando eles
gritavam que a permanência de Feliciano garantia o estabelecimento da família,
as coisas começaram a girar em minha cabeça.
Baseados na Bíblia,
eles defendem ferozmente que a família é constituída de homem, mulher e filhos.
Mas em algum momento eles pararam pra pensar que existem pessoas que pensam de
forma diferente? Que a sua Bíblia está CHEIA de contradições que teólogos e
apologistas cristãos tentam, tentam, mas não conseguem explicar? Que a Bíblia
está longe de ser um código de conduta confiável para uma sociedade moderna (verifique
a Lei de Moisés no início do Velho Testamento e conclua que teríamos uma
sociedade teocrática no estilo Taleban)? Que Jesus nunca se pronunciou em
relação aos homossexuais? Tudo o que é dito sobre a homossexualidade no Novo
Testamento é escrito por Paulo (mais conhecido como São Paulo), um ex-judeu,
que se converteu ao cristianismo no caminho de Damasco, mas que ainda pensava
com a cabeça de um fariseu, corrente radical a qual ele pertenceu. Jesus não
declarou nada. Não existem registros em lugar algum, assim como não existe um
registro sequer da aparência messias cristão.
E por que os
evangélicos (cristãos no geral) se consideram paladinos dos bons costumes,
defensores da moral? Como se a moral apresentasse um protocolo estabelecido. Os
gritos daqueles evangélicos, se me permitem uma tradução, dizia: “queremos que
uma minoria esmague outras minorias”. Fiquei decepcionado ao ver evangélicos
negros, negando sua herança africana, tapando seus ouvidos para declarações de
cunho historicamente deformado do deputado Feliciano (sobre a maldição dos
africanos), e aceitando descenderem de um “povo maldito”, apenas para sustentar
sua fé. Os gritos de apoio ao pastor-deputado denunciam a vontade que repercute
por todas as igrejas: seja feita a vontade da igreja, dos seus líderes. E acho
até engraçado, que isso acaba anulando aquilo que eles ‘pedem’ a Deus no
Pai-Nosso: “seja feita a vossa vontade,
assim na Terra como no céu”.
O cristianismo
primitivo foi vítima de perseguições terríveis e vergonhosas por parte de um
império que visava sua extinção. Quatro séculos depois, o cristianismo era a
religião oficial desse mesmo império. Nos séculos seguintes, o poder da igreja
cristã foi elevado às alturas, a religião foi mesclada à política, tornando-a
uma instituição, em boa parte de sua trajetória, cruel e materialista. Sim, embriagada
pelo poder. Hoje os evangélicos ainda
são minoria. Por muito tempo eram chamados de ‘crentes’ e sofriam abusos em
diversos setores da sociedade (eu mesmo ouvia muita besteira na escola por ser
crente).
Aqui fica um alerta.
Como em toda minoria que se fortalece, desenvolve-se o ressentimento, a mágoa e
a vingança. Os evangélicos aos poucos estão se apoderando de cargos e
estrategicamente planejam com ambição. A maior parte das igrejas se tornou um
centro de negócios e politicagem e seus membros desejam avidamente bens
materiais, sob a nociva Teoria da Prosperidade. Já não se ouve a mensagem do amor,
da caridade nos púlpitos do país. O povo evangélico se tornou feroz como um
leão, esquecendo-se do temperamento de cordeiro que seu mestre Jesus expunha ao
ser perseguido. Quando passar de minoria para maioria, destilará seu rancor pela
política brasileira.
O grito dos
evangélicos que reverberava hoje nos corredores da Câmara me assustou. Querem
de qualquer forma frear a marcha de um país laico, com seus preceitos
religiosos que estão como um câncer, espalhados pelo Congresso Nacional, pelas
assembleias legislativas e pelas câmaras municipais (veja o exemplo da Frente
Parlamentar Evangélica, que não contribui efetivamente em nada para a evolução
da sociedade).
O homossexual quer
casar, isso não proíbe o cristão de ir à igreja, de prestar seu culto. Já o
evangélico quer proibir, quer frear o anseio de pessoas que são diferentes e
tem o mesmo direito, sob a mesma constituição. Isso está errado.
Realmente não existe
ideologia entre a maioria dos cristãos. Existe uma bandeira rasgada, sem
mastro, nas mãos de fundamentalistas, que não vivem e não deixam viver. A
ideologia deles deveria ser o amor ao próximo e isso inclui tolerância. Mas
hoje eles acharam na política mundana e secular um melhor caminho para
‘evangelizar’. E como é de conhecimento comum, política exige ideologia. E isso
eles não tem. Tem apenas uma salada de distorções e conflitos.
Eu cresci ouvindo nas
igrejas, que um dia, o Brasil seria de Jesus, quando os evangélicos superariam
os católicos em número de fieis. Hoje, aos 28 anos me questiono: quando isso
acontecer, será mesmo de Jesus?
Fica um vazio, não?