segunda-feira, 1 de abril de 2013

Feliciano: Bandeira Rasgada e Sem Mastro


Andando pelos corredores das Comissões no Anexo 2 da Câmara dos deputados, entre ‘protestantes’ (os que protestam e os que se intitulam evangélicos), notei um grave ‘vazio de ideal’, que para esse que vos escreve, é o grande mal da sociedade.

Os que se sentem lesados pelo fato de Marcos Feliciano ocupar a presidência da Comissão de Direitos Humanos, gritavam, urravam palavras de ordem. “QUADRILHA!” era o que repetiam, quando alguns deputados que apoiam o líder evangélico saíam da sala da tão polêmica e visada comissão. Até que, num momento de silêncio, uma moça carregando seus vinte e poucos anos gritou:

- Ei pessoal! Calma aí! Estamos protestando contra o Feliciano, vamos manter o foco!

No mesmo instante o silencio se prolongou e os gritos tiveram outro tom, na verdade o mesmo que ouvimos há semanas: fora Feliciano.

Ali, no calor do momento, a multidão desviou-se do objetivo. Acontece. Bola pra frente.

Ao caminhar alguns metros me afastando desse grupo, ganhei o corredor paralelo, que apresenta uma entrada para a mesma sala, entrada esta que é reservada para o público, imprensa e assessores parlamentares como eu. O tumulto adquiria uma maior proporção e percebi que ali ocorria um embate: cidadãos contra o deputado Feliciano e cidadãos pró-Feliciano. É óbvio que o grupo que estava ao lado do deputado do PSC era evangélico. Ali, em meio às discussões, embates ferozes, aquela disputa pra ver quem tem o grito mais alto, um coro ressoou pelos corredores: “Feliciano, não renuncia, o Brasil precisa da família”.

Entre aplausos e vaias, andei lentamente até a parte externa do Anexo 3 e acendi um cigarro. “Afinal, o que está acontecendo ali?”, pensei.

A luta de um grupo é pela renúncia de Feliciano. A do grupo antagonista pede por sua permanência, como uma espécie de redenção moral. Mas o que percebi ali foi uma grave evidência desse “vazio de ideal”, como se estivessem perdidos em meio às câmeras da imprensa, que registravam tudo com voracidade e satisfação. O grupo pró-Feliciano entoava hinos tradicionais de suas igrejas. Mas quando eles gritavam que a permanência de Feliciano garantia o estabelecimento da família, as coisas começaram a girar em minha cabeça.

Baseados na Bíblia, eles defendem ferozmente que a família é constituída de homem, mulher e filhos. Mas em algum momento eles pararam pra pensar que existem pessoas que pensam de forma diferente? Que a sua Bíblia está CHEIA de contradições que teólogos e apologistas cristãos tentam, tentam, mas não conseguem explicar? Que a Bíblia está longe de ser um código de conduta confiável para uma sociedade moderna (verifique a Lei de Moisés no início do Velho Testamento e conclua que teríamos uma sociedade teocrática no estilo Taleban)? Que Jesus nunca se pronunciou em relação aos homossexuais? Tudo o que é dito sobre a homossexualidade no Novo Testamento é escrito por Paulo (mais conhecido como São Paulo), um ex-judeu, que se converteu ao cristianismo no caminho de Damasco, mas que ainda pensava com a cabeça de um fariseu, corrente radical a qual ele pertenceu. Jesus não declarou nada. Não existem registros em lugar algum, assim como não existe um registro sequer da aparência messias cristão.

E por que os evangélicos (cristãos no geral) se consideram paladinos dos bons costumes, defensores da moral? Como se a moral apresentasse um protocolo estabelecido. Os gritos daqueles evangélicos, se me permitem uma tradução, dizia: “queremos que uma minoria esmague outras minorias”. Fiquei decepcionado ao ver evangélicos negros, negando sua herança africana, tapando seus ouvidos para declarações de cunho historicamente deformado do deputado Feliciano (sobre a maldição dos africanos), e aceitando descenderem de um “povo maldito”, apenas para sustentar sua fé. Os gritos de apoio ao pastor-deputado denunciam a vontade que repercute por todas as igrejas: seja feita a vontade da igreja, dos seus líderes. E acho até engraçado, que isso acaba anulando aquilo que eles ‘pedem’ a Deus no Pai-Nosso: “seja feita a vossa vontade, assim na Terra como no céu”.

O cristianismo primitivo foi vítima de perseguições terríveis e vergonhosas por parte de um império que visava sua extinção. Quatro séculos depois, o cristianismo era a religião oficial desse mesmo império. Nos séculos seguintes, o poder da igreja cristã foi elevado às alturas, a religião foi mesclada à política, tornando-a uma instituição, em boa parte de sua trajetória, cruel e materialista. Sim, embriagada pelo poder.  Hoje os evangélicos ainda são minoria. Por muito tempo eram chamados de ‘crentes’ e sofriam abusos em diversos setores da sociedade (eu mesmo ouvia muita besteira na escola por ser crente).

Aqui fica um alerta. Como em toda minoria que se fortalece, desenvolve-se o ressentimento, a mágoa e a vingança. Os evangélicos aos poucos estão se apoderando de cargos e estrategicamente planejam com ambição. A maior parte das igrejas se tornou um centro de negócios e politicagem e seus membros desejam avidamente bens materiais, sob a nociva Teoria da Prosperidade. Já não se ouve a mensagem do amor, da caridade nos púlpitos do país. O povo evangélico se tornou feroz como um leão, esquecendo-se do temperamento de cordeiro que seu mestre Jesus expunha ao ser perseguido. Quando passar de minoria para maioria, destilará seu rancor pela política brasileira.

O grito dos evangélicos que reverberava hoje nos corredores da Câmara me assustou. Querem de qualquer forma frear a marcha de um país laico, com seus preceitos religiosos que estão como um câncer, espalhados pelo Congresso Nacional, pelas assembleias legislativas e pelas câmaras municipais (veja o exemplo da Frente Parlamentar Evangélica, que não contribui efetivamente em nada para a evolução da sociedade).

O homossexual quer casar, isso não proíbe o cristão de ir à igreja, de prestar seu culto. Já o evangélico quer proibir, quer frear o anseio de pessoas que são diferentes e tem o mesmo direito, sob a mesma constituição. Isso está errado.

Realmente não existe ideologia entre a maioria dos cristãos. Existe uma bandeira rasgada, sem mastro, nas mãos de fundamentalistas, que não vivem e não deixam viver. A ideologia deles deveria ser o amor ao próximo e isso inclui tolerância. Mas hoje eles acharam na política mundana e secular um melhor caminho para ‘evangelizar’. E como é de conhecimento comum, política exige ideologia. E isso eles não tem. Tem apenas uma salada de distorções e conflitos.

Eu cresci ouvindo nas igrejas, que um dia, o Brasil seria de Jesus, quando os evangélicos superariam os católicos em número de fieis. Hoje, aos 28 anos me questiono: quando isso acontecer, será mesmo de Jesus?

Fica um vazio, não?